quinta-feira, 29 de abril de 2010

capitulo 4

Foi como se Joe pudesse ouvir essa voz, porque houve algo perturbador no jeito
que se virou para me olhar. Deveria parecer o típico cara Americano, com esses traços
tão marcados e os uniformes do colégio, mas ele não era. Durante minha fuga e nos
momentos que se sucederam, quando ele achava que estávamos tentando salvar a vida,
tinha percebido algo selvagem espreitando por baixo dessa fachada.
— Eu gosto de gárgulas, montanhas e ar puro. Isso é tudo.
— Você gosta de gárgulas?
— Eu gosto de monstros que sejam menores do que eu.
— Nunca tinha pensado dessa forma.
Tínhamos chegado às linhas dos prados. O sol brilhava com força e tive a sensação
de que a escola despertava e se preparava para receber os alunos e devorá-los através da
abobadada entrada de pedra.
— Ela me deixa apavorada. – Confessei.
— Ainda não é tarde demais para sair correndo, Demi. – Disse com toda
tranqüilidade.
— Não quero sair correndo, mas também não quero estar rodeada por estranhos.
Quando estou com pessoas que não conheço sou incapaz de falar, de agir normalmente
ou ser eu mesma... Porque está sorrindo?
— Bem, não me parece que você tenha tido muitos problemas para falar comigo.
Pisquei surpresa. Joe tinha razão. Como isso foi possível?
— Com você... suponho que... Acho que me assustou tanto que passou o medo do
choque. – balbuciei.
— Eh, pois funcionou.
— Sim. – No entanto senti que havia algo a mais. Os estranhos me davam pânico,
mas ele não era um estranho. Tinha deixado de ser quando entendi que ele tinha tentado
salvar minha vida. Tinha a sensação que conhecia Joe desde sempre, como se estivesse
esperando sua chegada durante anos. – Devo voltar antes que meus pais perceberem que
não estou.
— Não deixe que te passem sermões.
— Eles não vão.
Jow não parecia ter tanta certeza disso, mas assentiu e se afastou. Perdeu-se entre
as sombras enquanto eu entrava em um cerco de luz.
— Nos vemos por aí.
Levantei a mão para dizer adeus, mas Lucas já tinha ido. Ele tinha desaparecido
sigilosamente no bosque.
Voltava a subir a grande escada de caracol até chegar ao último andar da
torre, ainda trêmula por causa da descarga de adrenalina. Desta vez não
me preocupei em não fazer ruído. Larguei no chão a mochila que
levava no ombro e me desabei no sofá. Haviam ficado algumas folhas
emaranhadas no meu cabelo e comecei a tirá-las.
— Demi? – Minha mão saiu do seu quarto, amarrando o cinto do roupão. Sorriu
para mim sonolenta. – Levantou cedo para dar um passeio, coração?
— Sim – respondi, com um suspiro. Já não valia a pena montar uma cena
dramática.
Meu pai saiu em seguida e a abraçou por trás.
— Não posso acreditar que nossa garotinha já esteja na Academia Meia Noite.
— O tempo passa tão rápido... – lamentou-se minha mãe com um suspiro – Quanto
mais velho se fica, mais rápido passa.
Meu pai sacudiu a cabeça.
— Eu sei.
Resmunguei. Sempre diziam a mesma coisa e tínhamos transformado em uma
espécie de brincadeira o aborrecimento que me produzia. Os sorrisos dos meus pais se
expandiram.
"Parecem muito jovens para serem seus pais", muitas vezes comentavam as pessoas
da minha cidade, embora o que eles realmente queriam dizer era "bonitos demais". Em
ambos os casos era verdade.
O cabelo da minha mãe tinha um tom caramelo e o do meu pai era de um vermelho
tão escuro que parecia quase preto. Meu pai era de estatura média, mas musculoso e
robusto, enquanto minha mãe era bem baixinha. O rosto da minha mãe era perfeito e
oval, como um camafeu antigo, enquanto meu pai tinha o queixo quadrado e um nariz
que parecia ter participado de mais de uma briga na juventude, ainda que em seu rosto
fizesse um bom efeito. Enquanto eu... Meu cabelo tinha uma tonalidade preta que
só podia ser descrita assim: preto; e minha pele era tão branca que sofria de uma
palidez mais mortuária do que antiga. Ali onde o meu DNA poderia ter virado para a
direita, havia dado uma brusca virada para a esquerda. Meus pais diziam que eu me
tornaria uma mulher muito bonita, mas isso é o que costumam dizer todos os pais.
— Vamos te dar algo para o café da manhã. – disse minha mãe, se dirigindo à
cozinha. – ou você já comeu algo?
— Não, ainda não.
Cai em conta que não teria sido uma má idéia ter comido alguma coisa antes da
minha grande fuga, meu estômago roconcava. Se Joe não tivesse me detido, nesse
momento eu estaria vagando pelo bosque com uma fome de lobo e com uma longa
caminhada até Riverton pela frente. Grande plano de fuga.
Neste momento, me veio à mente a imagem de Joe se lançando sobre mim e nós
dois rolando entre a relva e as folhas. Tinha me dado um susto de morte e estremeci ao
me lembrar, embora agora que por razões bem diferentes.
— Demi – Meu pai parecia muito sério e o olhei com o sentimento de
culpabilidade. Por acaso ele tinha adivinhado o que eu estava pensando? Então percebi
que estava ficando paranóica, ainda que fosse incontestável que meu pai não sorria
quando se sentou do meu lado. – Sei que não é o que mais deseja, mas Meia Noite é
importante para você.

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