quarta-feira, 28 de abril de 2010

capitulo 1

Era o primeiro dia de aula, ou seja, a última chance de escapar.
Eu não tinha uma mochila com um kit de sobrevivência ou de uma
carteira volumosa para comprar um bilhete de avião para onde quer que
fosse, ou um amigo me esperando na rua, em um carro com o motor em marcha.
Resumindo: Precisava do que a maioria das pessoas em seu juízo perfeito chamaria de
“um plano”.
No entanto, dava na mesma, eu não pensava em ficar na Academia Meia Noite por
nada no mundo.
A fraca luz do amanhecer apontava no horizonte, enquanto eu tentava me enfiar nos
jeans embolados e tirava um grosso suéter preto. A essas horas da manhã e nas alturas em
que já estávamos, fazia frio, mesmo em Setembro. Prendi meus cabelos num coque feito
às presas e calcei as botas de montaria. Apesar da importância de não fazer barulho, eu
não me preocupava se meus pais acordariam. Eles não eram exatamente madrugadores,
por assim dizer. Caiam mortos na cama, até que soava o despertador e para isso ainda
faltava umas duas horas.
O que me dava uma boa vantagem.
Do outro lado da janela do meu quarto, a gárgula de pedra me ferroava com o olhar,
enquanto sorria para mim com uma careta ladeada por algumas proeminentes presas.
Peguei minha jaqueta jeans e lhe mostrei a língua.
— Da mesma forma que gosta de estar pendurada aí fora, no Baluarte dos Malditos
– murmurei – Então que aproveite.
Fiz a cama antes de sair. Normalmente têm que ficar em cima de mim para que eu a
faça, mas desta vez nem tiveram que me dizer. Eles já teriam o bastante com o ataque que
iam ter mais tarde e pensei que esticando a colcha me redimiria um pouquinho com eles.
Ainda que o mais provável fosse que eles não partilhassem dessa opinião, o fiz de
qualquer forma. Estava afofando as almofadas quando, de repente, me lembrei de algo
estranho tão vívido, como se ainda não tivesse acordado, algo que havia sonhado essa
mesma noite:
Uma flor cor de sangue.
O vento uivava entre as árvores que me envolviam, agitando os galhos em todas as
direções. Lá em cima, o céu se encobriu com nuvens tempestuosas. Afastei meus cabelos,
que puniam meu rosto. Eu só queria olhar a flor. As pétalas, peroladas de chuva, eram
de um vermelho vívido, langoroso e acentuado, como os de algumas orquídeas tropicais.
No entanto, a flor estava exuberante e completamente aberta, pendendo no ramo como
uma rosa. Era a mais exótica e fascinante flor que eu já tinha visto Ela tinha que ser
minha.
Porque essa lembrança me fez estremecer? Era só um sonho. Respirei fundo e me
concentrei. Era hora de partir.
Eu tinha a mala pronta. Eu a tinha enchido na noite anterior com apenas algumas
coisas: Um livro, óculos de sol e um pouco de dinheiro se no final precisasse ir até
Riverton, que era a coisa mais próxima da civilização que havia na área. Isso me manteria
ocupada o caminho todo.
Bem, eu não estava fugindo de casa, pelo menos não de verdade, como quando você
rompe com tudo e assume uma nova identidade e, sei lá, se junta a um circo ou algo
assim. Não, se tratava de uma declaração de princípios. Eu tinha me oposto desde o
primeiro momento em que meus pais deixaram transparecer a idéia que entraríamos na
Academia Meia Noite, eles como professores e eu como aluna. Tínhamos vivido na
mesma cidadezinha a vida inteira, eu tinha ido ao mesmo colégio com as mesmas pessoas
desde que tinha cinco anos e queria que continuasse sendo assim. Há pessoas que gostam
de conhecerem estranhos e fazem amigos com facilidade, mas eu nunca fui assim. De
jeito nenhum.
É engraçado como quando as pessoas te chamam de "tímida", elas costumam sorrir.
Como se tivesse graça, como fosse umas dessas manias que você acaba perdendo quando
se fica mais velho, como os vãos que ficam entre os dentes quando caem os de leite. Se
elas soubessem o que se sente quando não se trata só de que seja difícil quebrar o gelo,
mas sim de você ser tímido de verdade, elas não sorriria. Pensariam duas vezes se
soubessem que essa sensação te tortura o estomago, ou te faz suarem as mãos, ou te
impede de dizer algo que tenha sentido. Não tem nenhuma graça.
Meus pais nunca tinham sorrido ao falar sobre isso. Conheciam-me muito bem e por
isso sempre achei que eles me compreendiam... Até que decidiram que, com 17 anos,
tinha chegado a hora de superar. E que melhor lugar do que um internato? Ainda mais se
eles também iam inclusos no pacote.
De certa forma adivinhei o que eles propunham, ainda que fosse só em teoria.
Quando nos dirigimos à entrada da Academia Meia Noite e vi aquele bloco gótico de
pedra tão monstruoso, soube imediatamente que não ai ficar ali nem morta. Meus pais se
fariam de surdos, de modo que eu teria que obrigá-los a me ouvir.
Fui avançando nas pontas dos pés pelo pequeno apartamento para professores que
minha família tinha usado durante esse ultimo mês. Ouvi os leves roncos de minha mãe
atrás da porta fechada do quarto de meus pais. Coloquei a mochila no ombro, girei a
maçaneta lentamente e comecei descer as escadas. Vivíamos no alto de uma das torres da
Meia Noite, e sei que isso soa mais excitante do que é na verdade, já que implicava em
descer por uns degraus que tinham sido entalhados na rocha há mais de duzentos anos e
que, com o desgaste do tempo, agora eram irregulares. A grande escada de caracol tinha
poucas janelas e também não tinham acendido as luzes, de modo que a escuridão
contribuía para dificultar a descida.
Quando me abaixei para tomar a flor, a cerca abalou. Foi o vento, pensei, mas não
era o vento. Não, a vedação crescia e o fazia tão rápido que se podia ser apreciada em
primeiro lugar. Trepadeiras e Silvas abriam caminho pelas folhas através de um emaranhado de queixas. Antes que pudesse pensar em correr, a barreira quase havia me
cercado. Eu estava cercada por ramos, folhas e espinhos.
A última coisa que eu precisava era que meus pesadelos me assaltassem a cada dois
por três. Respirei fundo e continuei descendo os degraus até chegar ao grande Saguão do
térreo. Era um espaço majestoso, construído para emocionar, ou pelo menos
impressionar: Chão de mármore, tetos altos abobadados e janelas com vidraças que iam
desde o chão até as vigas formando um padrão caleidoscópio. Todas, menos uma no
mesmo centro, cujos vidros eram transparentes. Deviam ter acabado na noite anterior os
preparativos para o dia de hoje, pois já tinha disposto um pódio para a diretora, onde
receberia os alunos recém chegados. Parecia que todo mundo continuava dormindo, o
que significava que não tinha ninguém que pudesse me deter. Abri a pesada e
ornamentada porta de entrada com um forte empurrão e respirei liberdade.
As primeiras névoas da manhã cobriam tudo com um manto cinza azulado enquanto
eu e atravessava os prados que rodeavam o internato. No século XVIII, quando foi
construída a Academia Meia Noite, essa área era um bosque cerrado. Ainda que algumas
aldeias se espalhassem aos arredores, nenhuma estava próxima à Meia Noite; e apesar
das vistas dos vales e dos densos bosques, ninguém nunca tinha construído uma casa aos
arredores. E com toda razão. Quem iria querer ficar perto desse lugar? Voltei minha visão
para as altas torres da escola, ambas rodeadas pelas silhuetas retorcidas das gárgulas, e
estremeci. Mais alguns passos e elas começaram a desvanecer-se no nevoeiro.
Meia Noite se mostrava ameaçadora atrás de mim. Os muros de pedras das suas
torres era a única barreira que os espinhos não podiam romper. Deveria ter saído
correndo até a escola, mas não o fiz. Meia Noite era muito mais perigosa que os
espinhos e, além do mais, eu não pensava em ir sem a flor.
O pesadelo estava começando a parecer mais real que a realidade. Desconfortável,
dei meia volta e comecei a correr. Afastei-me dos prados e desapareci no bosque.
Logo tudo acabará, disse a mim mesma, abrindo passagem entre as folhas secas e os
ramos caídos dos pinheiros, que rangiam sob meus pés. Ainda que quase não houvesse
cem metros até a porta principal, tinha a sensação de estar muito mais longe. A densa
névoa fazia com que parecesse que eu já me encontrava no coração do bosques. “Meus
pais acordarão e se darão conta que não estou. No final compreenderão que eu não posso
suportar, que eles não podem obrigar-me. Sairão para me procurar e, ok, se irritarão
bastante por tê-los assustado deste jeito, mas vão entender. Sairemos da Academia Meia
Noite e não voltaremos nunca mais".
Estava com o coração apertado. Em vez de me reconfortar, cada passo que me
afastava da Academia Meia Noite colocava em prova a minha determinação. Antes, ao
elaborar o plano, tinha me parecido uma boa idéia, como se fosse infalível, mas agora
que era real e estava sozinha no bosque, entrando em sua espessura, eu não tinha tanta
certeza. Talvez estivesse fugindo para nada. E se me arrastassem de volta de qualquer
forma?
Um trovão explodiu. Meu pulso se acelerou. Virei definitivamente às costas para a
Meia Noite e observei a flor que se abateu entre seus ramos. O vento arrancou-lhe uma
pétala. Coloquei a mão entre os espinhos, senti que cortavam minha pele dolorosamente,
mas isso não me deteve; eu estava decidida.
Comecei a correr para o leste, tentando colocar terra entre Meia Noite e eu, e ao
mesmo tempo meu pesadelo insistia em me acompanhar. Era esse lugar. Arrepiava-me os
cabelos, fazia sentir-me inquieta e vazia. Se me afastava dali, tudo sairia bem. Respirando
com dificuldade, olhei para trás para verificar o quanto tinha me afastado... quando o vi.
A menos de cem metros de mim, havia um homem envolto por um casaco grande e
escuro, entre as arvores, meio oculto pela névoa. No momento em que nossos olhares se
encontraram, ele disparou a correr em minha direção.
Até esse momento não tinha conhecido o que era o medo. Uma sensação fria como
água gelada sacudiu todo o meu corpo e então descobri o quão rápido eu podia correr.
Não gritei. Pra que? Tinha entrado no bosque para que ninguém me encontrasse, a coisa
mais idiota que já tinha feito na vida e, pelo que parecia, também seria a última que faria.
Além do mais, para que eu ia levar um celular, se não tinha cobertura de sinal? Ninguém
viria me salvar. Tinha que correr o mais rápido que pudesse.
Ouvia seus passos atrás, quebrando ramos e afastando folhas. Estava chegando
perto. Deus, como ele era rápido! Como alguém podia correr a essa velocidade?
Te ensinam a se defender, pensei. Supõe-se que você sabe o que fazer em situações
como esta! Eu não me lembrava de nada, não podia pensar em nada. Os ramos rasgavam
as mangas da minha jaqueta e se enganchavam nas mechas de cabelo que tinham se
soltado do coque. Tropecei em uma pedra e mordi a língua, mas continuei correndo. O
homem estava cada vez mais perto, perto demais. Tinha que acelerar, mas não podia.

2 comentários: