terça-feira, 4 de maio de 2010

capitulo 5

Era o mesmo tipo de discurso que ele fazia quando eu era pequena antes de ter que
engolir o xarope para tosse.
— Não quero voltar a ter essa conversa agora.
— Patrick, deixe-a em paz. – Minha mãe me estendeu um copo antes de voltar para
a cozinha, onde havia algo fritando em uma frigideira. – Além do mais, como não
acordamos cedo, nós vamos chegar tarde à reunião do corpo docente antes da
apresentação.
Meu pai consultou a hora e resmungou.
— Por que colocam essas coisas tão cedo? Como se alguém quisesse ter que descer
lá à essas horas.
— Tem toda razão. – murmurou minha mãe.
Para eles, qualquer hora antes do meio dia era cedo demais. No entanto, tinham
trabalhado como professores desde que me lembrava, sem esquecerem nem um único dia
de sua grande disputa com as oito da manhã.
Acabaram de se preparar enquanto eu tomava o café da manhã, fizeram algumas
brincadeiras com intenção de me animar e me deixaram sozinha sentada à mesa. Pois
bem. Muito tempo depois que desceram as escadas e os ponteiros do relógio se
arrastaram sigilosamente para a hora da apresentação, eu continuei na cadeira. Acho que
eu tentava me convencer de que, enquanto não terminasse com meu café, não teriam que
ir conhecer todas essas pessoas novas.
O fato de que Joe estaria entre elas – um rosto amigo, um protetor – ajudava um
pouco. Mas não muito.
Finalmente, quando ficou óbvio que não poderia mais adiar, entrei em meu quarto e
vesti o uniforme da Meia Noite. Odiava o uniforme; eu nunca havia tido que usá-lo. No
entanto, o pior de tudo foi que, ao entrar no meu quarto, voltei a recordar o estranho
pesadelo que tinha tido essa noite.
Uma camisa branca engomada.
Espinhos arranhando minha pele, me surrando, me animando a regressar.
Uma saia vermelha pregueada.
Pétalas se ondulando para cima e se escurecendo, como se queimassem no meio de
uma fogueira.
Um suéter cinza com o escudo da Meia Noite.
OK. Esta não é uma boa ocasião para deixar de ser uma mórbida irremediável?
Como já, por exemplo?
Decidida a me comportar como uma adolescente normal e comum pelo menos no
primeiro dia de aula, eu me olhei no espelho. O uniforme não me caia precisamente mal,
ainda que também não caia lindo de morrer. Fiz um rabinho no cabelo, sacudi um
raminho que tinha me passado despercebido e decidi não dar mais volta: já estava
preparada.
A gárgula continuava me encarando insistentemente, como se tivesse se
perguntando como era possível que alguém pudesse ter essa pinta. Ou talvez estivesse
zombando pelo tumultuoso fracasso do meu plano. Pelo menos não teria mais que olhar
para sua horripilante cara. Endireitei-me e saí do meu quarto... pela última vez: deixava
de me pertencer de agora em diante.
Tinha estado vivendo no internato com meus pais no último mês, então tive tempo
para explorar a escola de cima a baixo: desde o grande saguão até as classes importantes
no térreo, que depois se dividiam em duas torres enormes. Os garotos viviam na torre
Norte com parte dos apartamentos dos professores, e, além disso, tinha um par de salas
que cheiravam a mofo e estavam cheias de arquivos, onde pelo visto iam parar todos os
registros. As garotas se alojavam na Torre Sul, junto com o restante dos apartamentos dos
professores, incluindo minha família. Os andares superiores do edifício principal, em
cima do grande saguão, se alojavam as salas e a biblioteca. Com o tempo, tinham
ampliado e feito adições à Meia Noite, portanto nem todas as seções tinham o mesmo
estilo ou estavam em perfeita simetria com o resto. Havia alguns corredores serpenteantes
que não conduzia a parte alguma. Do quarto da minha torre eu estudava o telhado, um
manto de fragmentos de arcos, taboas e estilos diferentes. Tinha aprendido a me mover
pelo edifício e seus arredores, era a única forma para me sentir preparada para enfrentar o
que vinha pela frente.
Voltei a descer os degraus. Dava na mesma todas as vezes que fazia esse caminho,
sempre tinha a sensação de que cairia rolando pela desgastada escada até o último degrau.
Olha como você é idiota se preocupando com pesadelos com flores murchas ou com cair
da escada, disse a mim mesma. Aguardava-me algo muito mais assustador.
Cheguei embaixo e saí ao saguão. Essa mesma manhã, mais cedo, tudo estava em
silêncio, como em uma catedral. Agora, estava abarrotado de gente e suas vozes
ressoavam em todas as partes. Apesar dos barulhos, tive a sensação de que meus passos
retumbaram na sala porque várias pessoas se viraram para mim de uma vez; era como se
todo mundo tivesse se virado para olhar o intruso, como se eu levasse pendurado no
pescoço um letreiro em neon que dizia: A NOVA.
Os alunos, reunidos em grupos muito apertados para que pudesse entrar um recém
chegado, voltaram seus vivos olhos escuros para mim. Foi como se todos pudessem sentir
o pavor pairado do meu coração. Todos me pareciam iguais, não de uma maneira clara e
precisa, mas sim da perfeição que compartilhavam. Os cabelos de todas as garotas
brilhavam, e elas os deixavam soltos sobre os ombros ou presos em um elegante coque.
Todos os garotos pareciam seguros de si mesmos e vigorosos, com sorrisos que lhes
serviam de máscaras. Todo mundo vestia o uniforme: suéteres, saias, jaquetas e calças
com todas as variações possíveis: cinzas, vermelhos, com xadrez, pretos. Todos levavam
o escudo do corvo bordado e o resplandeciam como se fosse o brasão de sua família.
Todos esbanjavam segurança, superioridade e desdém. Senti o calor que se desprendia ali
em pé, na periferia do lugar, mudando de um pé para o outro, desconfortável.
Ninguém me cumprimentou.
O murmúrio geral voltou a se impor imediatamente. Pelo visto, as garotas novas
deselegantes não mereciam mais que alguns instantes de atenção. Minhas bochechas
queimavam de vergonha, porque era óbvio que tinha feito alguma coisa errada, mas não
consegui imaginar o que poderia ser. Por acaso teriam sentido, assim como eu, que na
verdade eu não iria me encaixar ali?
Perguntei-me por onde andava Joe. Estiquei o pescoço, o procurando pela
multidão. Achava que poderia enfrentar tudo aquilo se Joe estivesse do meu lado.
Talvez fosse uma idiotice nutrir esse tipo de sentimento para um cara que eu mal
conhecia, mas o fiz assim mesmo. Joe tinha que estar em algum lugar, mas não
consegui encontrá-lo. Sentia-me completamente sozinha no meio de todas essas pessoas.
À medida que ia margeando o salão para um canto, comecei a reparar em que havia
outros alunos que estavam na mesma situação que eu ou, pelo menos, que também eram
novos. Um garoto loiro com um bronzeado de praia vestia uma roupa tão amassada que
dava a impressão ter dormido vestindo ela, ainda que precisamente ali não parecesse que
ir super-informal fosse te fazer ganhar pontos. Por baixo da jaqueta, mas encima do
suéter, usava aberta uma camisa Havaiana de cores tão berrantes que se destacavam na
penumbra de Meia Noite. Também havia uma garota com o cabelo muito escuro e tão
curto que parecia um garoto. O corte de cabelo não era descontraído e juvenil, mas sim
dava a impressão de que foi feito com uma navalha de barbear de um jeito que melhor lhe
tinha parecido. O uniforme, dois números maior, penduravam pelos ombros. Era como se
as pessoas se afastassem dela, como se os repelisse com um campo de energia. Como se
fosse invisível. Tinham-lhe colocado o sambenito de insignificante, antes mesmo da
primeira aula.
Como eu podia ter tanta certeza disso? Bem, porque também tinha acontecido
comigo. Estava parada na periferia da multidão, agoniada pelos murmúrios, intimidada
pelo sagão de pedra e tão perdida quanto se pode estar.
— Atenção!
A voz retumbante quebrou o barulho e o reduziu ao silêncio. Todo mundo se voltou
de uma vez para o extremo do grande saguão, onde a Senhora Darbus, a diretora, tinha
subido ao pódio.
Ela era uma mulher alta, de abundante cabelo escuro que levava preso no cangote,
com as mulheres da época vitoriana. Foi-me impossível adivinhar sua idade. Usava uma
blusa de renda que se fechava com um broche dourado no pescoço. Se você considera
que a severidade é um sinônimo de beleza, não haveria ninguém mais atrativo que ela. Eu
a tinha conhecido quando meus pais e eu nos instalamos nos apartamentos do corpo
docente e ela já tinha me intimidado um pouco, ainda que me obrigasse a lembrar que
mal a conhecia.
De qualquer forma, nesse momento ela parecia mais imponente ainda. Ao ver com
que imediata e facilidade impunha ordem naquela sala cheia de pessoas, – as mesmas que
haviam me excluído de mútuo e tácito acordo antes de me dar a oportunidade de que me
ocorresse algo que dizer – compreendi pela primeira vez que a senhora Darbus tinha
poder. E não se tratava do poder que acompanha de maneira inerente ao cargo de
diretora, mas sim ao poder real, ao inato.

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