quarta-feira, 28 de abril de 2010

capitulo 3

Neste momento Joe me fez uma pergunta que deixou deslocada:
— Quer realmente ir embora daqui?
— Está se referindo a... fugir? Realmente fugir?
Joe assentiu e parecia que o dizia muito a sério. Ainda que não pudesse ser. Com
certeza ele tinha me perguntado para me trazer de volta à realidade.
— Não, não quero – admiti finalmente – Vou voltar e me preparar para ir às aulas
como uma boa menina.
Outra vez esse sorriso.
— Ninguém te obriga a se comportar como uma boa menina.
Seu modo de dizer isso me reconfortou.
— É que... A Academia Meia Noite... Não sei se eu vou saber me encaixar neste
lugar.
— Eu não me preocuparia com isso. Pode ser que não seja tão ruim acabar não se
encaixando neste lugar.
Ele me olhou fixamente, muito sério, como se soubesse de outro lugar em que
pudesse encaixar melhor. Ou ele realmente gostava de mim ou estava imaginando porque
queria que ele gostasse. A experiência praticamente nula sobre esse tema me impediu de
saber.
Coloquei-me em pé a toda pressa.
— E o que você estava fazendo quando me viu? – Perguntei, enquanto ele também
se levantava.
— Eu já te disse, achei que precisava de ajuda. Por aqui passam pessoas que são um
pouco baderneiras. Nem todo mundo sabe se controlar. – Ele retirou algumas agulhas de
pinheiro do suéter. – Não deveria ter tirado conclusões precipitadas, mas agi por instinto.
Desculpe.
— Não se preocupe, de verdade. Já sei que queria me ajudar. Eu me referia ao que
estava fazendo antes de me ver. A apresentação só começará dentro de algumas horas e
ainda é muito cedo. Disseram para os alunos que chegassem por volta das dez.
— Nunca fui bom em seguir regras.
Aquilo estava começando a me parecer interessante.
— Então... Você é uma dessas pessoas matinais que se levantam de um salto pelas
manhãs?
— De jeito nenhum, mas eu ainda não dormi. – Ele tinha um sorriso cativante e eu
me dei conta que ele sabia como utilizar-lo. E eu não me importava. – De qualquer
forma, minha mãe não podia me acompanhar. Ela está fora, podemos dizer que de
viagem de negócios. Peguei o trem noturno e decidi chegar a pé, para conhecer o terreno
em que pisava e... Resgatar donzelas em apuros.
Ao me lembrar a que velocidade ele tinha corrido atrás de mim e entender que ele o
tinha feito para salvar minha vida, o foco da recordação mudou completamente: todos
meus medos se desvaneceram e sorri.
— Porque está vindo para a Meia Noite? Eu sou forçada a ficar pelos meus pais,
mas certamente você poderia ir a qualquer outro lugar. Um lugar melhor. Como... sei lá,
qualquer lugar.
Joe parecia sem saber o que responder. Ele ia afastando os ramos enquanto abria
caminho pelo bosque para que não batessem no meu rosto. Nunca antes tinham me aberto
passagem.
— É uma longa história.
— Não estou com presa para voltar. Além do mais, ainda faltam quatro horas até a
apresentação.
Joe inclinou a cabeça, mas não afastou o olhar de mim. Tinha algo
incontestavelmente sedutor neste movimento, ainda que não tivesse certeza de que ele
pretendia produzir esse efeito.
A cor dos olhos era quase idêntica ao da terra em que pisavamos.
— É que também é uma espécie de um segredo.
— Sei guardar segredos. Quero dizer, você vai manter em segredo esse assunto por
mim, certo? Refiro-me a sair correndo e morrendo de medo...
— Não vou contar a ninguém. – no final de alguns segundo de hesitação, Joe
acabou me contando a verdade. – Há uns cento e cinqüenta anos, um antepassado meu
tentou entrar no internato. Pode-se dizer que ele foi suspenso. – Joe começou a rir e foi
como se a luz do sol tivesse irrompido entre as arvores. – Por isso, depende de mim “para
limpar a honra da família".
— Não é justo. Não deveria ter que tomar suas decisões dependendo do que ele fez
ou deixou de fazer.
— Não todas, me deixam escolher as meias.
Sorri quando ele subiu a perna da calça para me mostrar a meia com losangos que
se mostrava por cima da pesada bota preta.
— Por que suspenderam seu tataravô ou o que quer que seja?
Joe sacudiu tristemente a cabeça.
— Foi combatido em um duelo na primeira semana.
— Um duelo? Vamos lá, alguém insultou sua honra? – Tentei me lembrar o que
tinha aprendido sobre duelos nas novelas e filmes românticos. O que estava claro era que
a história de Joe era definitivamente muito mais interessante que a minha. – Ou foi por
uma garota?
— Bem, ele teria que ter aproveitado muito bem o tempo para conhecer uma única
garota nos primeiros dias de aula.
Joe parou como se tivesse acabado de se dar conta que era o primeiro dia de aula
e ele já tinha conhecido uma garota. Senti um impulso, como se algo me puxasse
fisicamente para ele, mas nesse momento Joe virou a cabeça e cravou o olhar nas
torres de Meia Noite, que se avistava entre os ramos dos pinheiros. Foi como se o edifício
o tivesse ofendido.
— Pode ter sido por qualquer coisa. Então travaram um duelo à mínima mudança.
Segundo a lenda familiar, o outro cara foi quem começou, embora a verdade, é que da na
mesma. O que importa é que ele sobreviveu, mas não sem antes quebrar uma das vidraças
do Saguão.
— Ah, claro, tem uma com cristais transparentes e não sabia por quê.
— Agora você já sabe. Desde então, Meia Noite fechou as portas para minha
família.
— Até agora.
— Até agora. – Concordou. – E não me importo. Acho que aqui aprenderei muitas
coisas, mas isso não significa que eu tenha que gostar do que vejo.
— Pois eu não estou certa que gosto de algo. – Confessei. "Exceto você",
acrescentou uma voz interior, que tinha se arrebatado de repente.

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