quinta-feira, 6 de maio de 2010

capitulo 6

— Bem vindos à Meia Noite. – disse, abrindo as mãos em um gesto de acolhida. Ela
tinha unhas grandes e translúcidas. – Alguns de vocês já estiveram aqui antes. Outros já
ouviram falar da Academia Meia Noite durante anos, talvez as suas famílias, e vocês se
perguntaram se algum dia entrariam em nossa escola. Este ano, aliás, contamos com um
novo tipo de estudantes, resultados de uma mudança na política de admissão.
Acreditamos que há chegado o momento de que nossos alunos conheçam um leque maior
de pessoas de origens variadas e, deste modo, prepará-los melhor para o mundo que os
esperam do outro lado das paredes de nossa instituição. Todos nós temos muito que
aprender desses outros estudantes, e estou certa que os tratarão com o respeito que
merecem.
Para o caso, poderiam ter pintado com spray vermelho em gigantescas letras:
ALGUNS DE VOCÊS NÃO SE ENCAIXAM AQUI. A "nova política de admissão" era,
sem dúvida, a responsável da presença do surfista e da garota do cabelo curto. Pelo visto,
nem se quer os consideravam "verdadeiros" alunos da Meia Noite, sendo que
representavam unicamente uma experiência educativa para os alunos "legítimos".
Eu não fazia parte da nova política. Se não fossem por meus pais, não estaria ali.
Em outras palavras: nem sequer era suficientemente diferente deles para me
considerarem um dos marginalizados.
— Em Meia Noite não tratamos nossos alunos como se fossem crianças. – A
senhora Darbus não se dirigia a ninguém especificamente, mas parecia se limitar a
observar por cima de todos com uma espécie de olhar distante que, no entanto, abrangia a
tudo o que entrava em seu campo de visão. – Eles têm vindo para aprender a se
comportar como adultos do século XXI, e assim é como se espera que se comportem. No
entanto, isso não significa que Meia Noite careça de normas. A posição que ocupamos
nos exige manter a mais estrita das disciplinas. Esperamos muito de vocês.
Não mencionou quais seriam as repercussões no caso de quebrarem as regras, mas
eu temia que os castigos só fossem o aperitivo.
Minhas mãos suavam. Estava cada vez mais corada e tinha a impressão que
chamava a atenção como um sinalizador. Eu tinha me prometido ser forte e não permitir
que as pessoas me intimidassem, mas palavras os ventos levam. Os altos tetos e as
paredes do grande saguão, parecia se fechar sobre mim. Inclusive senti que começava a
ficar sem ar.
Minha mãe conseguiu chamar minha atenção sem me fazer nenhum gesto nem me
chamar pelo nome, como costumam fazer as mães. Meus pais estavam em uma das
extremidades da fila de professores esperando para que os apresentassem e ambos
sorriram para mim com confiança. Eles queriam ver-me desfrutar do momento.
A infundada esperança foi o que sobrecarregou o copo. Já era suficientemente duro
ter que lutar contra o medo, para por cima me ver obrigada a enfrentar a sua decepção.
— As aulas começarão amanhã. – concluiu senhora Darbus – Por hoje, instalemse
em seus quartos, apresentem-se a seus colegas, passeiem pelas instalações. Contamos
com que estejam preparados. É um prazer tê-los aqui e esperamos que vocês saibam
aproveitar sua estadia em Meia Noite.
A sala irrompeu em aplausos e a senhora Darbus os agradeceu com um ligeiro
sorriso e uma caída de olhos, um piscar lento e satisfeito, como o de um gato bem
alimentado. Em seguida, o sussurro generalizado voltou a se impor na sala, mais violento
do que antes. Só tinha uma pessoa com que eu desejava falar e estava claro que essa
poderia ser a única pessoa que talvez se interessasse em falar comigo.
Rodeei toda a sala mantendo as costas sempre pressas à parede. O procurei entre a
multidão com desesperação, ansiando um vislumbre da faísca de cabelo castanho escuro  de Joe, suas largas costas ou seus olhos verdes escuros. Se eu o procurava e
ele estivesse me procurando, cedo ou tarde teríamos que nos encontrar. Apesar do pânico
que me provocavam as massificações de pessoas, e minha tendência de exagerá-las, sabia
que só tinha uns duzentos alunos naquele lugar.
Disse a mim mesma que Joe se sobressairia, que não era como os outros: frio,
pedante e vaidoso. No entanto, em seguida compreendi o quão enganada eu estava. Joe
não era pedante, mas compartilhava o mesmo aspecto: traços belos e definidos, o mesmo
corpo de perfeitas proporções e a mesma... em fim, a mesma perfeição. Não se destacaria
demais no meio daquelas pessoas tão perfeitas porque na verdade ele fazia parte delas.
Diferente de mim.
À medida que os professores e alunos se dispersavam, a multidão foi gradualmente
diminuindo. Fiquei vagando por lá até que fui quase a única que ficou no grande saguão.
Eu estava convencida que Joe viria me procurar. Ele sabia o quão assustada eu estava e
se sentia responsável por ter me assustado ainda mais. Será que ele nem se quer queria
me cumprimentar?
No entanto, ele não apareceu. No final tive que aceitar que o tinha julgado mal e
isso significava que não tinha mais remédio a não ser ir conhecer minha colega de quarto.
Subi os degraus de pedra lentamente. Meus sapatos novos de solas duras repicavam
contra o chão e meus passos ressoavam com grande escândalo. O que eu tinha desejado
era continuar subindo até o último andar e ir diretamente para o apartamento dos meus
pais, mas sabia que me iriam me enviar escada a baixo imediatamente assim que eu
abrisse a porta. Eu tinha tempo de sobra para pegar minhas coisas e me mudar
definitivamente depois de comer. No momento a prioridade era “me instalar”.
Tentei olhar pelo lado positivo. Talvez a escola tivesse intimidado minha colega de
quarto tanto quanto a mim. Certamente as coisas seriam mais simples se eu convivesse
com outra "marginalizada". Ia ser uma tortura ter que viver com uma estranha, me ver
obrigada a compartilhar o mesmo espaço com alguém a quem eu não conhecia, inclusive
de noite, ainda que eu esperava que isso acabaria passando. Nem nos meus melhores
sonhos imaginava fazer amizade com ninguém.
No formulário dizia "Miley Ray Cyrus”. Tentei relacionar o nome com a garota
que lembrava, mas ela não batia com ele, mas quem poderia saber?
Abri a porta e descobri, com a alma nos pés, que o nome de minha colega lhe servia
como um anel no dedo. Não era nenhuma marginal. Na verdade era a mesma
personificação do protótipo da Meia Noite.
A pele de Miley tinha a tonalidade de um rio ao amanhecer, uma pele excelentemente torrada e suave, e tinha o cabelo encaracolado preso em um coque frouxo
que deixava à vista seus brincos de pérolas e um esbelto pescoço. Estava sentada diante
da penteadeira e me olhou enquanto ordenava cuidadosamente seus vidros de esmaltes.
— Então você é Demi – disse. Nem apertos de mão, nem abraços, somente o
tilintar dos esmaltes contra a penteadeira: rosa pálido, coral, melão, branco – Você não é
como eu esperava.
Muito obrigada.
— Eu digo o mesmo.
Miley inclinou a cabeça e me esquadrinhou com o olhar. Perguntei-me se já nos
odiávamos. Levantou uma mão com manicura perfeita e começou a deixar claro vários
pontos contando com os dedos.

terça-feira, 4 de maio de 2010

capitulo 5

Era o mesmo tipo de discurso que ele fazia quando eu era pequena antes de ter que
engolir o xarope para tosse.
— Não quero voltar a ter essa conversa agora.
— Patrick, deixe-a em paz. – Minha mãe me estendeu um copo antes de voltar para
a cozinha, onde havia algo fritando em uma frigideira. – Além do mais, como não
acordamos cedo, nós vamos chegar tarde à reunião do corpo docente antes da
apresentação.
Meu pai consultou a hora e resmungou.
— Por que colocam essas coisas tão cedo? Como se alguém quisesse ter que descer
lá à essas horas.
— Tem toda razão. – murmurou minha mãe.
Para eles, qualquer hora antes do meio dia era cedo demais. No entanto, tinham
trabalhado como professores desde que me lembrava, sem esquecerem nem um único dia
de sua grande disputa com as oito da manhã.
Acabaram de se preparar enquanto eu tomava o café da manhã, fizeram algumas
brincadeiras com intenção de me animar e me deixaram sozinha sentada à mesa. Pois
bem. Muito tempo depois que desceram as escadas e os ponteiros do relógio se
arrastaram sigilosamente para a hora da apresentação, eu continuei na cadeira. Acho que
eu tentava me convencer de que, enquanto não terminasse com meu café, não teriam que
ir conhecer todas essas pessoas novas.
O fato de que Joe estaria entre elas – um rosto amigo, um protetor – ajudava um
pouco. Mas não muito.
Finalmente, quando ficou óbvio que não poderia mais adiar, entrei em meu quarto e
vesti o uniforme da Meia Noite. Odiava o uniforme; eu nunca havia tido que usá-lo. No
entanto, o pior de tudo foi que, ao entrar no meu quarto, voltei a recordar o estranho
pesadelo que tinha tido essa noite.
Uma camisa branca engomada.
Espinhos arranhando minha pele, me surrando, me animando a regressar.
Uma saia vermelha pregueada.
Pétalas se ondulando para cima e se escurecendo, como se queimassem no meio de
uma fogueira.
Um suéter cinza com o escudo da Meia Noite.
OK. Esta não é uma boa ocasião para deixar de ser uma mórbida irremediável?
Como já, por exemplo?
Decidida a me comportar como uma adolescente normal e comum pelo menos no
primeiro dia de aula, eu me olhei no espelho. O uniforme não me caia precisamente mal,
ainda que também não caia lindo de morrer. Fiz um rabinho no cabelo, sacudi um
raminho que tinha me passado despercebido e decidi não dar mais volta: já estava
preparada.
A gárgula continuava me encarando insistentemente, como se tivesse se
perguntando como era possível que alguém pudesse ter essa pinta. Ou talvez estivesse
zombando pelo tumultuoso fracasso do meu plano. Pelo menos não teria mais que olhar
para sua horripilante cara. Endireitei-me e saí do meu quarto... pela última vez: deixava
de me pertencer de agora em diante.
Tinha estado vivendo no internato com meus pais no último mês, então tive tempo
para explorar a escola de cima a baixo: desde o grande saguão até as classes importantes
no térreo, que depois se dividiam em duas torres enormes. Os garotos viviam na torre
Norte com parte dos apartamentos dos professores, e, além disso, tinha um par de salas
que cheiravam a mofo e estavam cheias de arquivos, onde pelo visto iam parar todos os
registros. As garotas se alojavam na Torre Sul, junto com o restante dos apartamentos dos
professores, incluindo minha família. Os andares superiores do edifício principal, em
cima do grande saguão, se alojavam as salas e a biblioteca. Com o tempo, tinham
ampliado e feito adições à Meia Noite, portanto nem todas as seções tinham o mesmo
estilo ou estavam em perfeita simetria com o resto. Havia alguns corredores serpenteantes
que não conduzia a parte alguma. Do quarto da minha torre eu estudava o telhado, um
manto de fragmentos de arcos, taboas e estilos diferentes. Tinha aprendido a me mover
pelo edifício e seus arredores, era a única forma para me sentir preparada para enfrentar o
que vinha pela frente.
Voltei a descer os degraus. Dava na mesma todas as vezes que fazia esse caminho,
sempre tinha a sensação de que cairia rolando pela desgastada escada até o último degrau.
Olha como você é idiota se preocupando com pesadelos com flores murchas ou com cair
da escada, disse a mim mesma. Aguardava-me algo muito mais assustador.
Cheguei embaixo e saí ao saguão. Essa mesma manhã, mais cedo, tudo estava em
silêncio, como em uma catedral. Agora, estava abarrotado de gente e suas vozes
ressoavam em todas as partes. Apesar dos barulhos, tive a sensação de que meus passos
retumbaram na sala porque várias pessoas se viraram para mim de uma vez; era como se
todo mundo tivesse se virado para olhar o intruso, como se eu levasse pendurado no
pescoço um letreiro em neon que dizia: A NOVA.
Os alunos, reunidos em grupos muito apertados para que pudesse entrar um recém
chegado, voltaram seus vivos olhos escuros para mim. Foi como se todos pudessem sentir
o pavor pairado do meu coração. Todos me pareciam iguais, não de uma maneira clara e
precisa, mas sim da perfeição que compartilhavam. Os cabelos de todas as garotas
brilhavam, e elas os deixavam soltos sobre os ombros ou presos em um elegante coque.
Todos os garotos pareciam seguros de si mesmos e vigorosos, com sorrisos que lhes
serviam de máscaras. Todo mundo vestia o uniforme: suéteres, saias, jaquetas e calças
com todas as variações possíveis: cinzas, vermelhos, com xadrez, pretos. Todos levavam
o escudo do corvo bordado e o resplandeciam como se fosse o brasão de sua família.
Todos esbanjavam segurança, superioridade e desdém. Senti o calor que se desprendia ali
em pé, na periferia do lugar, mudando de um pé para o outro, desconfortável.
Ninguém me cumprimentou.
O murmúrio geral voltou a se impor imediatamente. Pelo visto, as garotas novas
deselegantes não mereciam mais que alguns instantes de atenção. Minhas bochechas
queimavam de vergonha, porque era óbvio que tinha feito alguma coisa errada, mas não
consegui imaginar o que poderia ser. Por acaso teriam sentido, assim como eu, que na
verdade eu não iria me encaixar ali?
Perguntei-me por onde andava Joe. Estiquei o pescoço, o procurando pela
multidão. Achava que poderia enfrentar tudo aquilo se Joe estivesse do meu lado.
Talvez fosse uma idiotice nutrir esse tipo de sentimento para um cara que eu mal
conhecia, mas o fiz assim mesmo. Joe tinha que estar em algum lugar, mas não
consegui encontrá-lo. Sentia-me completamente sozinha no meio de todas essas pessoas.
À medida que ia margeando o salão para um canto, comecei a reparar em que havia
outros alunos que estavam na mesma situação que eu ou, pelo menos, que também eram
novos. Um garoto loiro com um bronzeado de praia vestia uma roupa tão amassada que
dava a impressão ter dormido vestindo ela, ainda que precisamente ali não parecesse que
ir super-informal fosse te fazer ganhar pontos. Por baixo da jaqueta, mas encima do
suéter, usava aberta uma camisa Havaiana de cores tão berrantes que se destacavam na
penumbra de Meia Noite. Também havia uma garota com o cabelo muito escuro e tão
curto que parecia um garoto. O corte de cabelo não era descontraído e juvenil, mas sim
dava a impressão de que foi feito com uma navalha de barbear de um jeito que melhor lhe
tinha parecido. O uniforme, dois números maior, penduravam pelos ombros. Era como se
as pessoas se afastassem dela, como se os repelisse com um campo de energia. Como se
fosse invisível. Tinham-lhe colocado o sambenito de insignificante, antes mesmo da
primeira aula.
Como eu podia ter tanta certeza disso? Bem, porque também tinha acontecido
comigo. Estava parada na periferia da multidão, agoniada pelos murmúrios, intimidada
pelo sagão de pedra e tão perdida quanto se pode estar.
— Atenção!
A voz retumbante quebrou o barulho e o reduziu ao silêncio. Todo mundo se voltou
de uma vez para o extremo do grande saguão, onde a Senhora Darbus, a diretora, tinha
subido ao pódio.
Ela era uma mulher alta, de abundante cabelo escuro que levava preso no cangote,
com as mulheres da época vitoriana. Foi-me impossível adivinhar sua idade. Usava uma
blusa de renda que se fechava com um broche dourado no pescoço. Se você considera
que a severidade é um sinônimo de beleza, não haveria ninguém mais atrativo que ela. Eu
a tinha conhecido quando meus pais e eu nos instalamos nos apartamentos do corpo
docente e ela já tinha me intimidado um pouco, ainda que me obrigasse a lembrar que
mal a conhecia.
De qualquer forma, nesse momento ela parecia mais imponente ainda. Ao ver com
que imediata e facilidade impunha ordem naquela sala cheia de pessoas, – as mesmas que
haviam me excluído de mútuo e tácito acordo antes de me dar a oportunidade de que me
ocorresse algo que dizer – compreendi pela primeira vez que a senhora Darbus tinha
poder. E não se tratava do poder que acompanha de maneira inerente ao cargo de
diretora, mas sim ao poder real, ao inato.